PET Desmistifica - Entre o Marketing e a Biotecnologia: Desextinção ou Ficção?
- PET Biologia UFAM
- 30 de abr.
- 6 min de leitura
A ideia de trazer de volta à vida espécies que desapareceram da Terra há milhares de anos sempre fascinou a humanidade, parecendo mais adequada às páginas de ficção científica ou a filmes de aventura do que aos laboratórios reais. Essa é a essência da desextinção – um conceito que propõe usar a biotecnologia e a engenharia genética para, de alguma forma, reverter o processo de extinção que moldou a história do planeta. Na teoria, a manipulação do material genético abre portas para essa possibilidade. No entanto, a transição da teoria para a prática revela uma realidade bem mais complexa e repleta de obstáculos.

O desafio primordial reside na própria passagem do tempo. O DNA, a molécula fundamental da vida, degrada-se naturalmente ao longo dos milênios. Consequentemente, obter material genético viável e completo de espécies extintas há muito tempo, como o lobo-terrível que desapareceu há aproximadamente 11.500 anos, no final do Pleistoceno (Finkelman, 2019), é virtualmente impossível. Mesmo fósseis notavelmente preservados, como os encontrados nos famosos poços de piche de La Brea, contêm apenas fragmentos de DNA danificado. Além disso, o mundo mudou drasticamente desde a era das megafaunas. Os ecossistemas se transformaram, novos predadores e competidores surgiram, e as condições climáticas são diferentes. Recriar um organismo que seja apenas fisicamente semelhante à espécie extinta é insuficiente; é preciso considerar seu comportamento complexo, sua dieta, suas interações sociais e, crucialmente, seu papel ecológico – elementos que são profundamente influenciados não apenas pela genética, mas também pelo ambiente e pela história evolutiva.
Essa desconexão entre a teoria e a prática significa que, atualmente, a desextinção no sentido de restaurar uma espécie funcionalmente integrada ao seu ecossistema original é mais uma hipótese ambiciosa do que uma realidade iminente. Contudo, essa dificuldade não tem dissuadido empresas de biotecnologia de perseguir esse objetivo e, em alguns casos, de anunciar publicamente seus progressos.
Nesse cenário, a Colossal Biosciences Inc., uma empresa americana focada em biotecnologia e engenharia genética, tem se destacado. A empresa declarou sua intenção de trabalhar na "desextinção" de diversas espécies icônicas, incluindo o tigre-da-tasmânia, o dodô e o mamute-lanoso. O caso que mais recentemente capturou a atenção global foi o anúncio relacionado ao lobo-terrível (Aenocyon dirus).

Em 7 de abril de 2025, a Colossal Biosciences revelou ao público seu projeto para "desextinguir" o lobo-terrível. Segundo reportagens veiculadas em plataformas como a revista TIME na mesma data (Kluger, 2025) e informações no próprio site da empresa (Colossal, s.d.), o anúncio foi marcado pela apresentação do nascimento de três filhotes geneticamente modificados, chamados Rômulo, Remo e Khaleesi. Esses animais foram criados a partir do genoma de lobos cinzentos (Canis lupus), uma espécie viva e geneticamente próxima. A equipe da Colossal teria modificado 14 genes específicos no DNA do lobo-cinzento com o objetivo de conferir aos filhotes características físicas que se assemelhassem às do lobo-terrível, como porte, cor da pelagem e a estrutura craniana distintiva. A orientação para essas modificações genéticas teria vindo da comparação com o DNA fragmentado recuperado de fósseis de lobo-terrível e dados de estudos genéticos prévios sobre a espécie (Perri et al., 2021).
Embora o anúncio tenha gerado entusiasmo em parte do público, ele foi recebido com considerável ceticismo e polêmica na comunidade científica. As críticas centram-se em vários pontos fundamentais. Primeiro, o fato de não terem utilizado DNA antigo viável para criar os animais. Dado o tempo transcorrido desde a extinção do lobo-terrível (cerca de 11.500 anos), a recuperação de DNA intacto para clonagem ou reconstrução direta é, para todos os efeitos práticos, impossível. O que foi feito foi editar o genoma de uma espécie viva.

Segundo, e talvez o mais importante do ponto de vista biológico e ecológico, a distinção fundamental entre as espécies. Pesquisas genéticas recentes, como a publicada na revista Nature (Perri et al., 2021), demonstraram conclusivamente que o lobo-terrível (Aenocyon dirus) não era apenas uma subespécie robusta de lobo, mas sim representante de uma linhagem canídea antiga e geneticamente distinta que divergiu do gênero Canis (ao qual pertencem os lobos cinzentos, cães, coiotes, etc.) milhões de anos atrás. Portanto, um animal derivado do genoma de Canis lupus, mesmo com edições genéticas para alterar sua aparência física, não é geneticamente um Aenocyon dirus. Consequentemente, seu comportamento, dieta, vocalizações e interações sociais serão inerentemente os de um lobo cinzento geneticamente alterado, não os de um lobo-terrível com sua ecologia e papel histórico próprios dentro do ecossistema pleistocênico (Finkelman, 2019). Além disso, esses filhotes foram criados em laboratório, não em condições naturais, o que impacta ainda mais seu desenvolvimento comportamental e sua capacidade de funcionar em um ambiente selvagem.
A forma como a Colossal comunicou o feito também foi amplamente criticada. Houve uma notável falta de transparência no processo: o projeto foi mantido em sigilo até que os filhotes já tivessem aproximadamente seis meses de vida antes de ser anunciado publicamente. Crucialmente, não houve publicação científica prévia em revistas revisadas por pares – o padrão para a validação de descobertas científicas importantes – nem qualquer registro público de aprovação por um comitê de ética independente. O uso de engenharia genética em mamíferos dessa forma levanta sérias questões morais, éticas e de bem-estar animal que requerem escrutínio público e científico rigoroso. O anúncio parece ter sido orquestrado com um forte apelo midiático, focado em gerar impacto na imprensa geral e nas redes sociais (Kluger, 2025), utilizando referências populares (como Game of Thrones) para cativar o público, em vez de apresentar dados técnicos e metodológicos completos para avaliação científica.
Em essência, o que a Colossal Biosciences parece ter criado é uma "simulação fenotípica transgênica" – um animal geneticamente modificado para parecer com um lobo-terrível em certas características físicas, mas que, em sua base genética e em seus instintos, continua sendo um lobo cinzento. Como a analogia sugere, é similar a editar um pastor alemão para que ele se assemelhe a um lobo; a aparência pode ser alterada, mas a essência biológica e comportamental subjacente permanece a da espécie original modificada.
Essa situação levanta um debate importante sobre o mérito científico versus o marketing em projetos de biotecnologia de ponta. Por um lado, a capacidade de editar 14 genes com precisão usando tecnologias como a CRISPR é, inegavelmente, um avanço técnico significativo que demonstra o poder crescente da engenharia genômica. Projetos como esse também cumprem um papel ao popularizar e estimular discussões sobre a conservação, as capacidades da genética e o futuro da biotecnologia. Por outro lado, a ausência de publicação científica prévia, a falta de transparência sobre a avaliação ética e de bem-estar animal, a forma midiática da comunicação (via meios como TIME, não por canais científicos primários) e o desenvolvimento sigiloso do projeto até o anúncio sugerem que o foco principal foi a geração de publicidade e o apelo comercial, mais do que a contribuição aberta e validável para a ciência. A forma como a "clama desse feito" foi apresentada parece ter um forte intuito comercial.

Portanto, é crucial manter um olhar crítico: nem tudo que é apresentado como "desextinção" realmente se encaixa na definição científica completa. O caso da Colossal ilustra vividamente a linha tênue entre o avanço científico real e a comunicação exagerada com fins de marketing. Embora o feito técnico possua valor, a forma como foi comunicado e conduzido transforma a biotecnologia em um espetáculo, afastando-a dos princípios de prática científica aberta, ética e passível de revisão por pares. As implicações desse caso vão muito além do animal em si; elas tocam em questões fundamentais de responsabilidade científica, bioética, os riscos ambientais potenciais de introduzir organismos geneticamente modificados e a necessidade de definir o que realmente significa "restaurar" uma espécie extinta.
É pertinente notar que a busca pela desextinção não é exclusiva da Colossal. Outros esforços foram feitos, embora com resultados limitados ou abordagens diferentes. Em 2003, cientistas espanhóis conseguiram clonar um embrião do Íbex-dos-pirenéus (Capra pyrenaica pyrenaica), uma subespécie extinta, usando células congeladas. O filhote chegou a nascer, mas viveu apenas por alguns minutos devido a problemas respiratórios. Mais recentemente, projetos como o da organização Revive & Restore buscam trazer de volta traços do pombo-passageiro (Ectopistes migratorius), extinto em 1914. A ideia, neste caso, é editar geneticamente pombos-comuns para criar um substituto funcional para o nicho ecológico que o pombo-passageiro ocupava, e não necessariamente uma réplica perfeita. O projeto ainda está em desenvolvimento.
Tentar trazer espécies extintas de volta, por si só, não é necessariamente um problema. A ciência por trás da desextinção, se conduzida de maneira ética, transparente e cientificamente rigorosa, pode oferecer ferramentas poderosas para a conservação de espécies em perigo e até mesmo para a restauração de ecossistemas. O ponto de discórdia surge no "como" isso é feito – especialmente quando a condução do projeto e sua comunicação evitam o debate público e científico aberto, a revisão por pares e priorizam a autopromoção. Desmistificar o "hype" biotecnológico é vital. Em uma era de rápidos avanços tecnológicos, entender o que é cientificamente real e possível, o que são as limitações éticas e biológicas, nunca foi tão urgente. É somente munidos de informação crítica e acessível que podemos exigir responsabilidade dos envolvidos e evitar que o fascínio pela tecnologia mascare práticas questionáveis ou a criação de "espetáculos" que obscurecem a complexidade e a seriedade da ciência da vida.

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